manuel carvalho
Figurações do Indefinido
por exemplo, Mike Goldberg
começa um quadro. Eu dou
uma passada. "Senta e bebe alguma coisa",
ele diz. Eu bebo; nós bebemos. Eu dou
uma olhada."Você pôs SARDINHAS neste."
"É, precisava de alguma coisa ali."
"Ah." Eu vou e os dias vão-se
e dou outra passada. O quadro
está indo, e eu vou, e os dias
vão-se. Dou uma passada. O quadro está
pronto. "Cadê SARDINHAS?"
Tudo o que sobrou são
letras, "Estava exagerado", diz Mike.
Frank O’Hara, Por que eu não sou pintor
(Esses breves apontamentos numerados constituem deliberadamente quase que um apanhado de rascunhos. Convidamos meus eventuais leitores ordená-los como bem lhes aprouver, não há necessidade de linearidade nessa leitura)
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Poderíamos pensar em duas figuras, duas imagens, da infinitude e do inacabamento: uma espécie de incompletude que se engendra numa eterna volta sobre suas próprias fundações, como se cada passo, cada bloco ou módulo que se edifica, cada traço ou rastro que imprime, exigisse um retorno sobre uma origem nunca localizada, uma origem que se constitui como obra ou devir, tornada futura, adiada, pois invenção e produto de um gesto interminável; ou ainda como projeto que nunca termina por se materializar em obra, sempre por se concretizar pois sempre aberto, e portanto permanentemente passível de adição de novos elementos, ausente de telos , construção que ameaça por se desabar tanto na ausência de um equilíbrio interno estável quanto numa assemblage ou puzzle de elementos díspares que se sobrepõem. Penso em Macedônio Hernandez, em que a matéria mesma se transforma em obra são os rabiscos e rascunhos que narram a o processo do romance que nunca será concluído, no Teste, de Valery, texto sem ponto final, deixado em potência, em simultânea ação sobre o presente, o passado e o futuro.
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Na pintura de Manuel de Carvalho se constituem duas modalidades de séries abertas: os quadros tendem à formação de conjuntos em função da combinação de elementos figurativos que provém de um manancial comum com um conjunto relativamente econômico de procedimentos que intervém sobre e perturbam a figuração que se constitui; esses modos de ataque à imagem – doravante tornados imagem – parecem dotados de um ecumenismo, pois tanto assumem a face de uma espécie de rasura deliberada, quase um informalismo, quanto a uma gama de efeitos ópticos que mascaram e perturbam a relação da espectador com que supostamente se representa. Essa incoerência de superfície é, no entanto, rigorosamente funcional: mesmo a simetria mais rigorosa é sustentada por uma gestualidade de fundo, é como que o corpo do artista que se plasma na superfície; gesto esse que se configura como um esforço ativo de trazer um grão de impureza, formando um mundo em que o alto e o baixo se confundem: a imaginária banal e o repertório histórico, o colorido de viés decorativo e a tematização do efeito e ilusão perceptivos, numa combinatória infinita de elementos díspares que apontam para possibilidade conviverem ao preço da torção sempre renovada de seus sentidos. As obras que vemos aqui expostas em Empate podem, portanto, tanto serem compreendidas como parte de uma série específica, quanto lidas como um coleção de algumas sub-séries e até mesmo se reagruparem em séries anteriores do trabalho de Manuel Carvalho (penso nos seus Anacolutos) mudando, no entanto, o sentido dessa mesma série ao se agregarem novas partes a um conjunto sempre aberto: essa abertura de sentido que se produz a partir do acúmulo e do caráter sempre provisório de cada obra e dos conjuntos que as mesmas formam constitui-se como o caráter conceitual último da pintura de Manuel Carvalho.
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Valéry, em Dégas Danse Dessin, fala de uma história única das coisas do espírito, que substituiria a autonomia das diversas histórias - história da filosofia, da arte, da literatura, das ciências. Em outras palavras, a possibilidade de remontar peças heterogêneas a partir de um fio narrativo subjetivo (uma subjetividade, no entanto, que está em irremediável contato com a dimensão anônima do arquivo). A partir daí Valéry falará em "história analógica", ou seja, uma historiografia digressiva, associativa, especulativa. Digressão, associação e arquivo: algumas das balizas que orientam uma poética da montagem de caráter velado e intuitivo que subjaz no trabalho de Manuel de Carvalho. Em Empate, estamos longe, pois, de uma concepção sintática do fragmento (penso em Pelechian, em que cada frame é como um código genético, uma estrutura informacional que prevê sua própria lei de articulação com os demais fragmentos, e em que o sentido do todo é determinado nesse princípio formal). Vemos corpos femininos, imagens pré-existentes que se unificam como partes de um arquivo dispersivo de uma memória a um tempo individual e coletiva: uma madona em êxtase, máscara divina para o prazer também mundano, uma jovem que expõe seu sexo e timidamente esconde seu rosto. Há uma perversão deliberada das origens, em que a citação se converte em pseudo-história, misturando frames de filmes, recortes de fotografias, pastiches de imagens de tradições pictóricas diversas. A lógica que preside a incorporação e a montagem na pintura de Manuel de Carvalho é a da produção de impurezas, em que o sentido a princípio revelado pela figuração, pelo traço, pelo rabisco, pela massa de cores é imediatamente posto em suspensão pelo elemento seguinte que o ladeia ou sobrepõe: estamos diante de uma montagem sempre semântica que se sustenta na instabilidade dos sentidos, a partir de uma abertura a uma acumulação potencialmente infinita de elementos. A miríade de referência que supostamente historicizaria, está agora a serviço do cancelamento da história pela idiossincrasia, pela afirmação da espuma anárquica dos gostos e dos desgostos, pela afirmação sussurrada: meu corpo não é igual ao seu (Roland Barthe por Roland Barthes). A máscara que oculta e simultaneamente revela, o jogo entre o véu e o velado; em Empate, se confundem o pessoal e o alheio, a pergunta sobre qual é a fonte do que vemos só se repete como multiplicação de enganos, como decidir?
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Há em Empate uma dialética estruturante entre nudez e velamento: os corpos que se mostram simultaneamente se ocultam, tanto num ímpeto narrativo que permeia a multiplicação das personae em cada um dos quadros quanto num constante questionamento das condições materiais de visibilidade dessas fantasmagorias que atravessam os trabalhos constantes nessa exposição. Os contornos dos corpos, tudo aquilo que suscita e sugere o desejo e sua implicação com o olhar, se desfazem como sombras, fantasmas, diante de uma lógica da rasura, no qual técnicas a princípio incompatíveis se articulam no engendrar de duas indefinições, das fronteiras dos corpos que se figuram, desestruturados, quase a se converterem em objetos, cor e geometria; e do próprio espectador, posto numa posição incerta diante do que vê, pois a cada aproximação e afastamento algo se revela e algo se oculta. Inda uma vez, como decidir?
Ewerton Belico